Junto com Marina e as Marias-fumaça, faça uma fascinante viagem pela ferrovia que inspirou Milton Nascimento e Fernando Brant a comporem Ponta de Areia.

                    Ambientado no extremo-sul da Bahia entre os anos de 1951 a 1966, o romance narra as desventuras amorosas da adolescente Marina enquanto resgata a história da ferrovia Bahia&Minas em seus 85 anos de existência.

                Inspirada na canção Ponta de Areia, de Milton Nascimento e Fernando Brant, a obra oferece uma fascinante viagem pelo trajeto desse trem que ligava Minas Gerais ao porto, ao mar.

                No livro estão ainda alguns episódios esquecidos pela historiografia da região, como a guerra campal entre pataxós e pescadores travada na Ponta de Corumbau em 5 de julho de 1951 e o naufrágio do luxuoso navio Principessa Mafalda, ocorrido no final da década de 1920 no mar de Abrolhos.

                    Leia abaixo alguns trechos da obra:

Estação ferroviária de Ponta de Areia - Bahia
A espera do trem:

                    Estamos em janeiro de 1951, numa quarta-feira quente e abafada em Ponta de Areia, extremo-sul da Bahia, onde o último pedacinho do Nordeste se encontra espremido entre Minas Gerais e o oceano Atlântico. Apressada, Marina chega à estação da Ferrovia Bahia&Minas onde o grande relógio de algarismos romanos instalado no alto da gare marca exatamente seis da tarde. Este edifício, construído em estilo neoclássico e com acabamento luxuoso, tem duas plataformas paralelas e foi inaugurado em 1881 para ser o ponto inicial do caminho de ferro que ligaria os vales mineiros do Rio Mucuri e Jequitinhonha ao Oceano Atlântico.

               Embora a bela baianinha tenha acabado de completar quatorze anos, ela ainda não perdeu o hábito de carregar sua encardida boneca de pano para todos os lugares onde vai. E é com Gertrudes que Marina comenta:

                 ― Hoje, painho há de chegar!

Como a composição que desce de Minas só deve bater por aqui depois das sete da noite, isso se não houver mais um dos costumeiros atrasos, a estação ainda está praticamente deserta. Olhos fixos nas duas paralelas de aço que seguem em direção à Praça Central de Ponta de Areia, Marina senta-se num dos bancos de madeira e se põe a esperar.

Conforme o tempo passa, mais e mais pessoas vão entrando no prédio projetado para abrigar multidões e ele começa a ganhar vida. Afinal, a chegada do trem é sempre um acontecimento em todas as cidades instaladas ao longo dos 582 quilômetros desta ferrovia. Tem gente que está aqui para esperar parente, receber amigos ou pegar alguma encomenda, outros vieram atrás de vender bugiganga, especular a vida alheia ou, simplesmente, observar o movimento e saber das novidades.

 

Dez horas e nada do trem dar as caras. Já totalmente lotada, a estação agora parece uma grande convenção onde, dividido em rodinhas, todos conversam sobre tudo. E, com o passar do tempo a multidão começa a se impacientar. Enfiando seu rosto redondo na janela da chefia, dona Filomena quer saber:

― Comunicô, seu Ananias?

― Nada ainda dona Filó, que o pinica-pau tá ali na sala dele caladinho, caladinho, diz o chefe da estação apontando para a estrovenga onde se destacam a serpentina de papel picotado e finos fios ligados à uma grande bateria. ― Se tivesse alguma informação, o bichinho estaria tagarelando: “Pipipi, pipi, pi!Pipipi, pipi, pi!”.

― Mas já devia de tê comunicado, né não? Que esse atraso hoje passa de três horas.

― Que devia ter comunicado, isso devia! responde ríspido o ferroviário.― Mas que ainda não comunicou, não comunicou.

― Isto é um absurdo! O senhor, como chefe dessa joça, tem de tomar alguma providência.

― Que providência a madame quer que eu tome?

― Mande um carro de linha até Juerana saber o que tá se passando.

― Farei isso quando o atraso completar seis horas, como prevê o regulamento.

― E nós vamos ficar aqui esperando todo este tempão?

― Se avexe não, dona Filó, que esse trem de Minas é assim mesmo. Tarda de vez em quando, que a ferrovia anda meio abandonada de manutenção, mas acaba chegando. (...)

Beleza ímpar

Marina vai continuar com seus afazeres até a mãe anunciar a trouxinha em cima da mesa. Antes de sair, ela corre ao seu quarto pensando em dar uma ajeitada nos cabelos. Porém, diante do espelho da penteadeira, pela primeira vez na vida a adolescente vai achar sua aparência meio sem graça.

Agora, sejamos sinceros: por um desses caprichos da natureza, a personagem central deste singelo romance de época nascera formosa. Não herdando da mãe mameluca, ou do pai cafuzo, qualquer traço mais amorfo, apenas a beleza que a mistura das três raças tem a oferecer, veio ao mundo uma baianinha belíssima. O problema é que, pensando em impressionar o jovem Capitão caso o encontre pelo caminho, a beldade resolve neste dia partir para uma tarefa impossível: aperfeiçoar o já absolutamente perfeito. (...)

 
Oficinas Gerais de Ladainha na pintura de João Eduardo
Viagem para Minas:

Quando os dois ponteiros em forma de flecha do grande relógio da estação assinalam quatro e quinze, o agente leva seu apito de metal a boca e o sopra com toda força. Duas badaladas no sino dependurado no teto dão a deixa final para a Maria-fumaça anunciar sua partida:

― Piiiiiiiuuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiii!

Jogando toda a força de seus músculos de aço nas alavancas que dão tração ao conjunto de grandes rodas motrizes, a Balduína expele pela chaminé um tufo de fumaça branco-acinzentada e parte com a nobre missão de fazer a M2 ― composição mista com cinco vagões de passageiros, um de carga e outro para animais ― chegar a Teófilo Otoni, no coração da região nordeste de Minas Gerais.

Ponta de Areia mal fica para trás e bate na consciência da fujona a sensação de que está se metendo numa enrascada fenomenal. Afinal, alguém com tão pouca idade e que nunca saiu do extremo sul da Bahia partir sozinha e praticamente sem dinheiro numa viagem pela vastidão do território do nordeste mineiro em busca dum caixeiro-viajante, é pura insanidade. Olhando para o ursinho de pano que viaja no bolso de seu vestido com a cabecinha para fora, ela faz uma desesperadora pergunta:

― E se não encontrar painho, o que a gente faz Galeguinho?

Santa ou demônio?

Voltando-se a Gregório, o caixeiro emenda:

― Tome tento, compadre! Que a carinha de santa dessa menina é puro fingimento. Aos poucos, ela vai ganhando confiança e logo põe suas manguinhas de fora. Aí, tu vai ver com quem tá lidando. Portanto, se a dita cuja for respondona, desobediente, mexer em alguma coisa ou tomar qualquer atitude que o desagrade, me conte amanhã pr’eu tomar as devidas providências. Não é porque tá na tua casa que a danada vai ficar sem umas palmadas.

― Nossa Vadinho! Quem ouve você falar acha que estou hospedando um monstro.

― Monstro não digo, mas que ela é levada da breca, não tenha dúvida. Pro compadre ter uma ideia vou dar a ficha corrida da pestinha: quando tinha sete anos quase pôs fogo na casa tentando construir um foguete com lata de banha e aos oito, preparou a trouxinha de roupas e foi pro porto disposta a embarcar num navio da Lloyd pra ser atriz de rádio novela no Rio de Janeiro. O pior é que a danada conseguiu subir a prancha se aproveitando da distração do rapaz que conferia os documentos de dois passageiros. E a bichinha só não foi parar na capital federal porque o capitão do vapor, muito por acaso, descobriu ela escondida debaixo duma escada. No ano passado, essa menina deu tamanha surra no filho da vizinha, que até hoje o coitado treme de medo só de ver ela passando do outro lado da rua.

― Estas coisas são típicas da idade. É parte do processo de desenvolvimento da personalidade. Marina não fez nada disso por maldade.

― Que não faz por maldade, eu sei. Faz mesmo é por fazer. Mas faz! E faz exatamente quando menos se espera. Aí é que mora o perigo. (...)

Estação de Teófilo Otoni no quadro de João Eduardo
A chegada do trem de ferro em Teófilo Otoni:

Perto das duas da madrugada Marina vê surgir na janela as primeiras casinhas de arrabalde de Teófilo Otoni. Dirigindo-se à sobrinha com ar nostálgico e forte brilho nos olhos, seu Alcides começa a resgatar um tempo longínquo em sua memória:

― Tive a honra de ver o trem correr pela primeira vez nessa cidade, Marininha. Foi numa terça-feira, 3 de maio de 1898.

― O senhor já era nascido?

― Contava com oito anos. E me lembro como se fosse hoje. Naquela madrugada, a cidade acordou com o barulho dos morteiros e bombas de choque que explodiam no alto do Morro do Cruzeiro. Do quintal de casa, a gente via o clarão do foguetório iluminando o céu. As ruas estavam todas embandeiradas e enfeitadas com folhas de coqueiros. Às cinco horas, a maior parte da população se movimentava pelas ruas no rumo da estação. E a estação não era nesse prédio imponente de hoje, ficava num comprido galpão de madeira improvisado.

Contendo a emoção que ameaça lhe travar a voz, o velho continua:

― A cada pouco, os sinos da Matriz replicavam convidando as pessoas a saírem de casa. E grupos com instrumentos musicais e matracas percorriam as ruas chamando os retardatários. Afinal, a chegada do trem e a inauguração da estação da Bahiminas seria o maior acontecimento do primeiro século de existência da cidade. E ainda tinha muita gente de fora, tanto que o Hotel Philadelphia e a Pensão de Dona Clara estavam totalmente lotados. O povo desse nordeste de Minas queria conhecer a Maria-fumaça, saber do funcionamento das composições. Tu precisava ter visto a festança.

De imaginação farta, Marina começa a se ver na antiga Philadelphia no dia mais importante de sua história.

― Quando o sol surgiu, no céu azul não tinha uma nuvenzinha pra atrapalhar. E o povaréu e as autoridades ficaram amontoados na estação à espera da novidade. Tinha até banda de música.

― Quando a Maria apareceu foi aquela folia.

― Mais ou menos. Porque essa gente simples tinha acompanhado a instalação dos trilhos e tal, mas só conhecia mesmo carro de boi e um ou outro automóvel. Da existência do trem, só se sabia de ouvir falar. Então, tava aquele alvoroço com todo mundo muito curioso pra saber como seria a tal geringonça que ia correr naqueles trilhos de aço levando coisas e gente.

― Nesse dia a Maria chegou no horário?

― Qual o quê! Atrasou como nunca. Também, com tanto figurão da política, fazendeiro e comerciante querendo participar da inauguração, a cada estação que o trem parava na subida da Bahia, demorava um tempão pra retomar a viagem. Tanto que deu oito, nove, dez horas e nada do trem de ferro bater em Teófilo Otoni.

Dando uma pausa na história, seu Alcides apanha um tanto de fumo que traz num saquinho, despeja-o na ponta do seu cachimbo, acende e dá a primeira baforada. Só então prossegue a narrativa:

― O foguetório continuou até às onze e meia quando um apito lá bem longe deu pistas do bendito do trem. Aí, se fez um silêncio de cemitério com o povaréu todo de sobreaviso.

― Agora teve festa!

― Que nada! Bastou a locomotiva apontar lá no fim da reta pro povaréu se inquietar. E quando chegou na estação aquele colossal dragão de ferro, bufando vapor, cobrindo tudo de fumaça e fazendo o chão tremer debaixo dos pés, a mineirada se apavorou. Foi o maquinista disparar o apito que aquele grito prolongado, estridente e com a força de mil sopranos fez todo mundo levar as mãos aos ouvidos em desespero. A partir daí, foi um deus nos acuda.

― Assustaram?

― Como se estivessem diante da besta do apocalipse. A correria foi tão grande, que gente desmaiou na plataforma. Tiveram até de abrir a única farmácia da cidade pra distribuir calmantes pros mais assustados.

― Eita povinho atrasado!

― Cada coisa na sua época, Marininha. Na virada do século, o trem ainda era uma grande novidade por aqui. Pois nestes sertões onde só existia o carro de boi, os sons mais comuns eram o ranger das rodas das carroças e o canto do galo. Então, só tinha que assustar mesmo. (...)

Uma das Marias-fumaça da Bahia&Minas na pintura de João Eduardo

Uma Maria-fumaça chamada Balduína.

Usuário habitual do trem de ferro por força de ofício, seu Ari aproveita a tranquilidade da viagem para detalhar à filha sua trepidante vida no constante vai e vem nas composições da Bahia&Minas. Assim, quando a M4 pega um acentuado aclive, vem a forte trepidação de eixos e o barulho característico das subidas das rampas. Então, ele comenta:

― Sabe como o povo diz quando o trem enfrenta um subidão desse?

― Não.

― Que a Maria tá batendo pandeiro.

Ouvido atento, Marina confere que o barulho cadenciado do vapor exalado pela caldeira no esforço da subida se mistura aos sons do choque entre as correntes que ajudam a prender os vagões sugerindo, mesmo, o tocar dum pandeiro.

Chegando no topo da rampa, o maquinista passa a disparar seguidos apitos curtos. Aí, o pai explica:

― Seu Malaquias tem fama de tartaruga, mas tá avisando ao guarda-freio pra tomar tento que vai soltar o trem na descida.

― Oxe! Isso não é perigoso?

― É não! Que o guarda-freio tá ali na plataforma do vagão com as mãos grudadas no travão. Se o Malaquias manda dois apitos, ele aperta o mecanismo e o comboio para. Se for um só, a ordem é para afrouxar que tá tudo sob controle.

Mais à frente um rapaz trazendo grande mala de papelão dá sinal com a mão. Diminuindo gradativamente a velocidade, o maquinista para diante da porteira da fazenda permitindo o embarque. Revoltado, seu Ari protesta:

― É por isso que esta joça vive atrasada! Seu Malaquias pega todo mundo que encontra na beira da linha. Desse jeito, vamos chegar em Otoni só no mês que vem.

― Piiiiuuuuuiiiiiiiiiiiii!

O sopro formidável da locomotiva lança ao céu um traço de fumaça que vai subindo retilíneo e lentamente. Chegando à estação de Sucanga, Marina vê a Maria se desengatar do resto do comboio e seguir sozinha a um desvio. Pouco depois, ela volta à linha-mestra vestindo traje de gala.

Em torno da chaminé foram instaladas hastes pretas de papelão sugerindo uma grande cartola, enquanto na parte da frente, logo abaixo do número 280 gravado em vermelho, tem uma gravata borboleta esculpida em madeira. Espetadas nas laterais há ainda duas bandeirolas ― a de Minas Gerais e a do Brasil ― indicando que esta locomotiva está assumindo uma missão oficial.

Além de vestida a rigor, a Maria voltou puxando um carro salão de luxo que traz esculpido nas laterais seu nome: Princesa.

Para desconforto dos passageiros, o tranco seco do reengate com o resto do comboio se propaga como uma onda provocando grande barulhada e uma sucessão de solavancos. Completada a operação seu Malaquias, munido de estopa e latinha do abrasivo Kaol, passa a dar polimento aos tubos de cobre, faixas da chaminé e a todos os detalhes de metal da velha máquina.

― Pra que será tudo isso? questiona Marina.

Antes que seu Ari arrisque um palpite, a banda de música vinda de Poté passa a executar um dobrado na plataforma que está toda embandeirada. E pela porta da estação entra um homem de fraque seguido pelo séquito de autoridades, seguranças e todo tipo de puxa-sacos.

Esbanjando simpatia, o engomadinho passa a cumprimentar, um a um, aqueles que estão debruçados nas janelas do trem. E, como a curiosidade é grande, faltará janela para tanta mão estendida.

― O senhor é quem? Pergunta Marina ao receber seu aperto de mão.

― Senador Tristão da Cunha. A moça bonita já tem idade pra votar?

― Inda não.

― Quando tiver, não esqueça desse nome: Tristão da Cunha.

― Pode deixar, diz ela feliz da vida por ter conversado com um figurão da política mineira.

Terminado esse aperta-mão, o senador sobe na varanda do Princesa e, em meio aos flashes dos fotógrafos começa seu falatório:

― Quero aqui dirigir minhas últimas palavras a esse povo ordeiro e perseverante do progressista distrito de Sucanga, de Poté e municípios adjacentes. Agradeço a calorosa acolhida com a qual me receberam nessa curta visita. Saibam vocês que vou me empenhar em conseguir tudo o que me foi pedido, principalmente a abertura de crédito de dois milhões de cruzeiros para execução dos serviços de abastecimento de energia na região, a construção de nova ponte sobre o córrego Potézinho, duas escolas em Valão, blá, blá, blá...

― Falou pouco, mas falou bonito! grita alguém ao fim do rol de promessas do político.

Sob uma chuva de aplausos, o dobrado executado pela banda e intenso foguetório, Tristão acena ao povaréu que viera prestigiar sua partida e entra no vagão de luxo.

Um forte assovio metálico e o badalar do sino de bronze liberam a partida da composição. Tomando cuidado para não dar nenhum tranco que possa incomodar o ilustre passageiro e sua comitiva, seu Malaquias põe a M4 em movimento. (...)

Estação Presidente Bueno da cidade de Nanuque no quadro de João Eduardo

Viajando no ventre da Maria:

Quando o trem se aproxima duma passagem de nível, seu Epifânio explica à Marina:

― O apito das locomotivas à lenha pode ter três tons diferentes. Nesta Baldwin, ele foi afinado em mi maior.

Chamando a adolescente para perto de si, ele aponta para a cordinha do teto e diz:

― Faça a Balduína falar e veja se não é verdade.

Com as mãos trêmulas de emoção por dar voz a uma locomotiva, Marina puxa então a corda e do apito sai um longo e afinadíssimo ― Piiiiiiiiuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiii!

             Ao entrar na periferia de Nanuque, seu Epifânio incumbe Marina de bimbalhar o sino que a locomotiva traz em seu dorso. Assim, numa alegre barulhada, a charmosa Maria-fumaça vai saudando quem encontra pelas ruas, praças, portas, janelas e quintais.

Quando o trem encosta na estação, pai e filha descem da cabine da grande máquina de ferro e voltam a seus lugares no carro de segunda classe.

Sempre fazendo muita fumaça, o comboio avança firme pela planície costeira quando o sol começa a se esconder dando ao céu um colorido magnífico. Mas tão belo espetáculo passa desapercebido aos olhos da nossa protagonista uma vez que Ponta de Areia se aproxima e isso lhe traz à mente velhos e grandes problemas. O maior deles é a mãe que, muito provavelmente, deve recepcioná-la nessa volta para casa munida do temível reio rabo-de-tatu.

A Balduína encerra sua jornada às sete e meia da noite. Cinco minutos depois, pai e filha estão caminhando a passos largos no rumo de casa. Mesmo com seu Ari dando todas as garantias de que intervirá a seu favor, Marina vai se preparando para um possível massacre. (...)

Um exército mouro invade Ponta de Areia:

Às onze da manhã, depois de entregar a marmita, pegar balinhas de goma e passar na frente ao Bar do Peixe, Marina chega ao cais ainda com um fio de esperança de encontrar o Egir e seu charmoso comandante por ali. Mas ao invés do veleiro negro, ela se depara com uma escuna de onde desembarca um exército vestindo farda vermelha.

Portando lanças e espadas, os invasores se alinham sobre o piso de madeira do ancoradouro tendo à frente o estandarte onde tremula a meia lua da bandeira turca. O objetivo da empreitada mourisca é sequestrar a imagem de São Sebastião de Narmona, soldado do exército romano que teria protegido os cristãos e por isso fora preso, flechado e depois executado a pauladas no distante ano de 286.

Recebida a ordem de ataque, ao som de flauta e o toque de caixas os discípulos de Maomé, seguidos por Marina e outras pessoas que vieram ao cais recepciona-los, avançam pela travessa Alvim empunhando suas espadas. Ao chegar a Praça Central, porém, eles se deparam com o batalhão dos devotos de São Sebastião. Vestindo fardas azuis, estes homens guardam o andor onde está a imagem do santo.

Escalando a velha gameleira plantada ao lado da igreja, Marina escolhe um dos galhos mais altos para se sentar e avisa:

― Vai começar a embaixada, Galeguinho! E este ano vamos assistir a briga de camarote.

Enquanto rojões espocam salpicando de branco o céu azul, os capitães, embaixadores, alferes, cabos de ponta e soldados dos dois exércitos se posicionam frente a frente. Ao fim de várias escaramuças, onde os envolvidos tiram faíscas das pedras da rua com suas espadas para mostrar habilidade, o líder mouro se dirige ao representante cristão com a seguinte mensagem:

― Embaixador cristão, eis eu como embaixador da Turquia, perante a lei e a vós, num dever a cumprir. Venho mandado pelo meu rei soberano impor a lei que devemos seguir, lei da verdade sem igualdade. Só a ela devemos adotar. Então, não sejas fanático com o cristianismo. Se tens por fim um nada a adorar, adorai meu ídolo, o senhor da Turquia e do mundo inteiro. Por aquele resplandecente Sol que ilumina o mundo, digo que divindade é pura ilusão. Pelo Sol e pela terra, não somos cristãos! Se por vossa ignorância for recusado, do maldito sangue em breve a terra será banhada. Com o auxílio do meu ídolo e da minha espada, em breve farei tu te esquecer desse deus que acreditas. Dai-me a resposta! (...)

Estação de Valão na pintura de João Eduardo

Mais uma viagem no trem de Minas:

Cinco da matina. O sol começa a despontar no horizonte quando um apito muito longe indica que a composição vinda de Ponta de Areia pelo ramal está atravessando a primeira passagem de nível do centro urbano. Dois minutos depois e a velha Balduína desponta rebolando sobre os trilhos gastos pelos anos de uso.

― Eis aí um monumental exemplo da arte mecânica! saúda seu Alcides. ― O monstro de ferro com uma centena de toneladas que engole madeira, produz força e cospe fumaça.

Ao entrar na estação a máquina espalha uma nuvem de vapores brancos que encobre o povaréu amontoado na plataforma. E logo o ar fica impregnado do cheiro da lenha queimada.

Rapidamente, Marina e seu Alcides embarcam em um dos carros da primeira classe que tem assentos estofados e passageiros bem mais alinhados que os da segunda. Aqui, a maioria dos homens traja terno de linho bem cortado, chapéu engomado e sapatos lustrosos, enquanto as mulheres vestem saias e blusas de tecido importado. Nas mãos, alguns levam um jornal ou revista que, nessa região onde a maioria da população é analfabeta, denota sinal de ilustração e fidalguia.

Assim que todos os passageiros estão a bordo o apito do chefe da estação e duas badaladas no sino liberam a viagem. Um novo esguicho de vapor indica que a temperatura da caldeira está no ponto ideal e seu Epifânio faz a Balduína dar seu grito de despedida:

― Piuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiii!

Um longo e perene chiado desencadeia forte ranger de ferros enquanto os vagões vão se chocando levemente uns com os outros. Em segundos, o comboio já estará contornando a estação pelo ramal que o devolverá à linha mestra. (...)

Marina vai ao confessionário:

Domingo. As sete badaladas do sino da igreja de Nossa Senhora de Lourdes chamam os fiéis a rezar. E Marina chega ao templo decidida a se confessar. Quem sabe se contando os pecados para Frei Alberto, Deus fica contente e traz o Capitão e aquela cigana de volta a Ponta de Areia, além de lhe apresentar logo o pretendente da fortuna.

Ajoelhando-se diante do confessionário instalado na sacristia, a filha da costureira pede:

― Bença, Frei!

― Esteja abençoada, minha filha. O que temos a revelar ao Altíssimo hoje?

― Tive a intenção de esganar aquele papagaio linguarudo que painho tem lá em casa. Pensar em matar um bicho que me chama de mijona o tempo todo é pecado?

― Claro! Os animais foram criados pelo Onipotente para receber chamego, não para serem esganados.

― Oxente! Só pensei, não esganei. Tá certo que dei um croque na cabecinha dele, mas o insolente sofreu foi quase nada.

― Minha filha, pecar em pensamento está previsto na Bíblia. Ademais, conheço a senhorita desde a pia batismal e sei que tens um gênio dos diabos. Portanto, se o animalzinho continuar perturbando, ele vai mesmo ser esganado. Ou não vai?

― Claro que vai.

― Dictum et factum!.

― Como?

― Dito e feito! Portanto, tente só pensar em coisas boas daqui para frente.

― Mais algum pecado?

― Fugi de casa!

― O que é isso, menina? Uma jovem na tua idade não pode abrir mão do convívio familiar.

― É que mãinha vive me batendo.

― Na certa você fez por merecer as palmadas.

― Não são palmadas, são lambadas com o reio rabo-de-tatu. E aquilo dói que só. Também, não é de vez em quando, é de vez em sempre.

― Mesmo assim. Geralmente, no caso de surra de mãe, se houve o castigo é porque houve o crime.

― Isso também tá na Bíblia?

― Não, está na lógica!

― Oxe! Desde quando dar uma olhadinha no movimento dos barcos lá no cais é crime?

― Foi só por isso mesmo?

― Só!

― A Rosa é uma pessoa muito equilibrada. Acho que você está exagerando na severidade do castigo que levou.

― O senhor acha porque quem tomou a tunda fui eu. Aí, fica fácil!

― Pois saiba que o Frei que te confessa e o Onipresente também sentem a tua dor.

― Então, as costas dos dois devem de estar ardendo até hoje, porque a surra foi muita. (...)

Jogo bruto:

Marina chega ao campo de futebol construído pela direção da Bahia&Minas e encontra o pai instalado na arquibancada de madeira.

― Que bom que apareceu, filhota. O Ferroviário de Ladainha precisa da nossa torcida.

― Nossa não, que vou torcer pro Bahiminas.

As palavras da filha fazem seu Ari corar de raiva, uma vez que a rivalidade familiar entre os dois cunhados nascera ainda durante o namoro do caixeiro com dona Rosa e vai da política ― Rômulo milita no Partido Comunista enquanto o caixeiro é filiado a conservadora UDN ― ao futebol. O pior é que os dois têm uma característica em comum: são passionais, desequilibrados e injustos até a medula em qualquer discussão que envolva um destes temas.

― Sua desalmada, não tem vergonha de torcer para o time dum inimigo do pai?

Antes que Marina possa responder, o atacante do Ferroviário abre o placar. Depois de comemorar muito, seu Ari passa a gritar:

― Mais um! Mais um!

Três jogadas depois é a vez do Bahia&Minas ir ao ataque. E basta Rômulo pegar na bola para o caixeiro berrar a todo pulmão:

― Não deixem esse comunista de merda passar. Quebrem a perna dele! Quebrem a perna dele!

Tamanha animosidade vinda da arquibancada acaba por irritar o irmão de dona Rosa que, no intervalo, vem tirar satisfação com o cunhado. Dá-se então um intenso bate-boca e fica faltando um isto para que os dois se engalfinhem,

O clima de enfrentamento entre torcedores de times rivais ao longo do traçado da Bahia&Minas em 1951 não se restringe ao ferroviário e ao caixeiro. Ele é marca registrada em todas as partidas do campeonato organizado pela direção da ferrovia e nos chamados amistosos, que de amistoso não têm nada. Tanto que o meião dos jogadores costuma durar uma única partida, já que as chuteiras têm travas de metal com seis birros ― pregos que evitam escorregões na grama ― e cada solada é uma meia destruída. Ao final do jogo, é de se espantar que os atletas saiam de campo ainda tendo duas pernas e dois pés cada um (...)

O sonho de correr o mundo num veleiro parece prestes a se realizar:

Se considerando empregada, Marina deixa o porto com a cabeça em alto mar. Recém ingressada na adolescência, fase da vida onde tudo é perigosamente maravilhoso, ela caminha pelas ruas de Ponta de Areia acreditando estar a um passo de se libertar da existência insossa e cotidiana que leva nesse último pedacinho da Bahia. Se a isca que jogou ao dono do veleiro negro foi mesmo engolida, em breve seu maior sonho ― o de mergulhar de cabeça no universo fantástico das viagens marítimas narradas por seu avô e descritas nos livros de Júlio Verne ― estará sendo realizado. E o que é mais instigante, realizado junto com um dos candidatos a príncipe encantado previstos pela cigana.

A personagem central deste açucarado romance cuja trama amorosa começa a decolar chega em casa com um turbilhão de ideias borbulhando em seu cérebro irremediavelmente imaginativo e aventureiro. Tanto que, nessa tarde nada sairá direito na realização do serviço doméstico. Se imaginando muito longe do Brasil, ela quebra dois pratos ao lavar a louça do almoço, murcha o bolo de cenoura da mãe ao abrir o forno à lenha antes do tempo e derrama alvejante no tanque onde algumas roupas coloridas estão de molho.

Casa limpa e arrumada, a sonhadora Marina se instala na rede pendurada entre duas jaqueiras do pomar e se põe a fazer planos mirabolantes. Afinal, é preciso ter guardado na mente todos os lugares que gostaria de conhecer para o caso de o Capitão aceitar sugestões de roteiro. E ela vai nesse devaneio quando surge Clarice: (...)

Ilustração em jornal inglês retratando o naufrágio do Mafalda

O naufrágio do Principessa Mafalda:

Convidados por Aurelino a conhecer o farol, Marina e o Capitão sobem com ele os 76 degraus degraus da torre de ferro. Lá do alto, eles terão uma fantástica visão de rochedos e praias desertas.

― Estamos a sessenta metros acima do mar, explica o faroleiro. ― Essa estrutura toda foi construída em 1861 e aqui no topo tem esta lâmpada poderosa. Seu facho emite relâmpagos brancos a cada seis segundos que podem ser vistos até do continente. 

― Essa piscação toda serve pra quê? quer saber a visitante.

― Pra orientar as embarcações, pois este é um dos lugares mais perigosos do mundo pra se navegar. Logo depois do descobrimento, os portugueses perceberam que era preciso ficar de olhos bem abertos quando passavam nestas águas. Tanto que, encurtando a frase Abra seus olhos, eles passaram a chamar a região de Abrolhos.

― Então, deve de ter afundado muito navio por aqui?

― Desde que o Brasil foi descoberto, mais de quinze. O último naufrágio aconteceu com o Lloyde 19 no ano passado. Mas o pior de todos se deu em 25 de outubro de 1927, quando o Principessa Mafalda foi a pique a umas quarenta milhas daqui do farol.

― O senhor já morava em Abrolhos nessa época?

― Já. E até ajudei no socorro.

― Ele bateu num arrecife, foi?

― Pior que o desastre não teve nada a ver com os corais! A hélice esquerda do Mafalda quebrou e abriu um buraco no casco a bombordo. Era quatro e meia da tarde e eu estava vindo duma pescaria com dois amigos quando o rádio da traineira captou o pedido de socorro. Na mesma hora seguimos as coordenadas e demos com o naviozão adernando. De cara, escutamos três explosões.

― Que desespero!

― Pois é! E ele era um paquete italiano de muito luxo. Vinha da Itália para a Argentina trazendo cerca de mil e duzentas pessoas entre passageiros e tripulantes. Mas estava com problemas, tanto que o motor apagou na costa da África e precisou ser consertado. Por isso, quando chegou na costa da Bahia já estava muito atrasado. Aí, o capitão Simon Gulí mandou tocar o bicho a todo vapor no rumo do Rio de Janeiro onde ia fazer uma escala. Na certa, foi essa pressa que provocou a quebra da hélice.

― Imagino a agonia dos passageiros.

― Pior é que os botes salva-vidas não davam pra todo mundo. A maioria estava com o casco podre por falta de manutenção. Era jogar no mar e eles faziam água. Fora o oportunismo de parte da tripulação que, em vez de ajudar a salvar os passageiros, tratou de cair fora. Por conta disso, os primeiros escaleres partiram quase vazios e ainda teve um cabra de nome Polaro que preferiu dar um tiro na própria cabeça a pular no mar e morrer afogado. Outro resolveu salvar a bandeira italiana que tava pendurada no mastro. Ele subiu lá no topo, tirou o pano e berrou: “Viva a Itália!”

― Esse ficou vivo?

― Que nada. Foi pro fundo do mar com bandeira e tudo. A confusão a bordo foi tão grande que até briga de faca e tiroteio teve. Isso, porque alguns passageiros das classes mais baixas tentaram saquear as cabines de luxo e os ricaços reagiram à bala.

― Oxe! Os cabras brigando por dinheiro numa situação dessa.

― Pra tu ver onde vai a ganância humana. E a selvageria não se deu só dentro do navio. Nos botes que saíam abarrotados de gente, os que já estavam dentro não deixavam quem estava se afogando entrar. Eu mesmo vi um marinheiro usar o cabo do remo pra partir a cabeça dum rapazote de seus quinze anos. (...)Um tio comunista:

No começo da noite, Marina resolve visitar Rômulo que acaba de voltar do hospital com um enorme curativo na cabeça. Depois de esgotarem o assunto sobre a rixa familiar e o trágico jogo da manhã, a sobrinha diz:

― O senhor sabia que uma pessoa beijar a outra é pecado, tio?

― Quem te falou isso?

― Frei Alberto.

― Esqueça aquele padreco reacionário prega! Ele nunca beijou ninguém, por isso não sabe o que diz.

― Então, beijar não é pecado?

― Claro que não! Esse vigário fala que tudo é pecado pra meter medo nos fiéis e manter o povo na sua dependência pra tal da salvação. Salvação que, se Deus existisse mesmo, nem ele teria.

― Oxente! Por quê?

― Se Frei Alberto tivesse preocupado com suas ovelhas, como vive pregando, ele ia lá pro porto ajudar a melhorar as condições de trabalho dos estivadores, em vez de cometer o pecado da gula se empanturrando de doces e de vinho com o dinheiro que encontra na caixa de esmola. Naquele cais tem gente trabalhando o dia inteiro por um prato de comida. E o patrão, com a burra cheia, ainda diz que o coitado tá ganhando o justo.

― Mas Deus existe sim, e há de castigar esses patrões, tio.

― Quem te garante, o Frei Alberto? Justo ele, que vive à custa destes mesmos patrões. Esse oportunista não é confiável. E esqueça Deus também. Ele não castiga ninguém porque simplesmente não existe. É uma invenção dos poderosos para manter o povo submisso aqui na Terra. A religião é a cachaça do povo, Marina. Ela faz as pessoas se conformarem com essa exploração toda por achar que vai ter um acerto de contas depois da morte.

― Será?

― Claro! Se existisse um Deus, ele não deixava esse mundo ter tanta injustiça, tanta miséria, pragas, doenças e guerras. Além do mais, como acreditar num ser invisível que ninguém nunca viu?

― Mas o senhor vê as assombrações.

― Pois é, murmura o ferroviário abrindo um sorriso amarelo. ― Mas elas, pelo menos, aparecem por aqui de vez em quando.

― Se Deus não existe, quem fez o mundo tão bem feitinho?

― E se Deus existe, de onde ele teria saído, do nada? Se do nada não pode nascer tanta coisa bonita, do nada também não pode aparecer um ser tão perfeito. Nessa toada, prefiro não acreditar em coisa alguma.

Refletindo sobre tudo isso, Marina encara o tio com um brilho no olhar. Se Deus é uma invenção humana, o líder espiritual da paróquia de Ponta De Areia um oportunista mentiroso e o pecado não existe, logo as penitências não fazem sentido. Nessa linha de raciocínio, ela está livre de varar a noite metida em padres-nossos e ave-marias pelo beijo passado e também pelos que virão no futuro se o Capitão reaparecer para levá-la correr o mundo. (...)

A guerra dos Pataxós:

Neste comecinho de manhã o arraial de Corumbau ― que na língua indígena significa lugar muito longe ou no fim do mundo ― está sendo invadido por um grupo de pataxós vindos da vizinha aldeia de Barra Velha, também conhecida como Bom Jardim de Monte Pascoal. E os dois turistas feridos se encontram no meio da guerra entre índios e brancos nesse que é um dos pontos mais remotos do litoral da Bahia.

O comando da operação silvícola está a cargo do cacique Honório Borges ― de um metro e meio de altura e 85 anos ― conhecido como Capitão Honório. Com ele, na linha de frente estão dois homens brancos, Ari Bering e Antônio Barbosa. A invasão tem como objetivo o saque à única mercearia do povoado que fica dentro do território indígena. Ocorre que o dono do estabelecimento, Theodomiro Rodrigues Cerqueira, avisado com antecedência por um espião, já esperava a incômoda visita de espingarda em punho.

O primeiro tiro dado pelo comerciante não atinge ninguém, entretanto a flechada que vem de troco acerta-lhe o ombro. Com Theodomiro fora de combate, os invasores tentam completar o serviço, mas estão sendo rechaçados à bala pelos outros moradores. No calor da luta, os pescadores ainda pensam em usar a linha de telégrafo que passa pela aldeia para pedir reforço policial. Porém, logo descobrem que o fio fora cortado pelos pataxós minutos antes do ataque.

Esta invasão é um protesto dos índios que reivindicam, há décadas, a demarcação de suas terras pelo governo federal. A batalha durará quase uma hora e vai entrar para a história da Bahia como O Fogo de 51.

Terminados os combates, Honório e seus homens batem em retirada levando consigo a mercadoria saqueada e Theodomiro de refém. (...)

Noite assombrosa:

Oito da noite. O vesgo Baiacu roça a perna da dona pedindo carinho e ela o ajeita no colo para ouvirem juntos mais um capítulo de O Direito de Nascer. Hoje, Marina fica sabendo que Maria Helena mudou para a casa da família em Havana e que Mamãe Dolores continua desaparecida com Albertinho Limonta.

Ao fim do dramalhão cubano, no programa Horóscopo do Dia as previsões de seu signo não poderiam ser mais sombrias:

― Capricórnio! Para os nativos deste signo o dia de amanhã pede reflexão e recolhimento. A conjunção de Netuno com Plutão trará turbulências às suas relações familiares e Júpiter, transitando em oposição à Marte, faz desse um dos piores momentos para os negócios. No amor você, capricorniana ou capricorniano, poderá viver terríveis decepções.

Não querendo ouvir mais nada, ela já pensa em desligar o aparelho quando a dupla Alvarenga e Ranchinho começa a cantar um de seus grandes sucessos:

Eram duas caveiras que se amavam

E à meia-noite se encontravam

Pelo cemitério os dois passeavam

E juras de amor então trocavam  

            Pronto! O tragicômico triângulo amoroso da letra lembra à Marina que ela terá de passar uma noite inteira sozinha nessa casa que julga extremamente vulnerável a seres do outro mundo. Além de ficar perto do mangue onde Rômulo garante que trens fantasmas costumam trafegar lotados de assombrações, ainda há na vizinhança um lobisomem travestido de açougueiro. (...)

 Cartinha lida no rádio:

Numa tarde qualquer, enquanto esfrega o chão da sala ouvindo música, Marina vai ao delírio. Pois entre uma canção e outra o locutor da Rádio Nacional, tendo uma manjada sinfonia romântica de fundo, anuncia:

― Recebo aqui uma cartinha muito curiosa vinda do sul da Bahia. A ouvinte Marina, vejam só, faz um comovente apelo pela volta do capitão inglês que naufragou em Ponta de Areia, foi flechado por índios na localidade de Ponta de Corumbau e, depois dessas tragédias resolveu voltar para sua terra natal.

Empostando mais a voz e sinalizando ao contrarregra que aumente a música de fundo, ele diz:

― Meu caro Capitão! Com certeza o senhor ouve nossa programação aí na Grã-Bretanha pelas potentes ondas curtas da Rádio Nacional. Então, peço-lhe encarecidamente que volte para sua Marina. O medo de um novo naufrágio ou de ser atacado por outro de nossos selvícolas, acredite, não é nada perto do amor que essa moça traz no coração. Pegue seu veleiro negro, Capitão, cruze o Atlântico e venha cair nos braços dessa baianinha tão carente de afeto. Corra todos os riscos, mas faça nossa ouvinte sorrir de novo, que ela merece!

― Minha cartinha foi lida, Galego! Agora, é só esperar, que não demora pro Egir bater lá no porto.

O que a baianinha tão carente não imagina é que sua mãe também ouvira a mensagem da cozinha onde fora apanhar uma xícara de café. E ela já entra na sala esbravejando:

― Essa Marina da carta é você?

― É não, mãinha. Tem mais de dez Marinas em Ponta de Areia. Só lá no grupo escolar lembro de quatro.

― Pois a dona Soraia dos Correios veio me trazer costura outro dia e disse que a senhorita mandou um envelope justo pra Rádio Nacional. Não liguei, porque pensei que fosse só um pedido de música. Mas agora sei muito bem o que tinha naquela carta.

― Essa mulher é uma mentirosa! replica a filha abrindo no rosto uma expressão de choro. ― A senhora não pode acreditar em tudo o que falam de mim.

― Mentirosa é você, que diz que não vai no cais e não sai de lá.

Apanhado o chicote de detrás da porta, a costureira esbraveja:

― Teu pai fala pra não te bater. Mas não posso aguentar vendo minha filha única arrastando asa pra macho, ida mais um marinheiro estrangeiro. Isso depois d’eu cansar de dizer que naquele porto só tem o que não presta. Deve ter sido com esse tal de Capitão que você passou a noite e não no mangue atrás de caranguejo. (...)

Se você gostou do jeitão do meu trabalho, baixe o e-book clicando no link:

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Ouça a música que inspirou a obra clicando no link:

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Conheça mais sobre a ferrovia Bahia Minas clicando no link:

https://www.youtube.com/watch?v=ML3kCuTzjys


Comentários

  1. Maravilhoso romance, descontraído, leve e de bom gosto, uma viagem inesquecível com a danada da menina Marina e ainda vislumbrando as estradas de trilho em que se viviam paixões, progresso e não tínhamos o vírus da violência. PARABÉNS ao ilustre autor pela iniciativa, meu amigo jornalista, escritor João Roberto Laque. SUCESSO!

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